Carlota, ou Madame Carlota como gostava que a tratassem, era uma figura que me acompanhou ao longo do meu crescimento, tanto para cima como para os lados. Madame Carlota morava no cimo da minha rua - sim, no cimo, porque no fundo moravam os pobres - e era sem sombra de dúvida, uma das personagens mais intrigantes que por ali habitava. Madame Carlota era aquilo a que eu chamo de velha gaiteira. Ela tinha 2 gaitas ; uma de foles e uma de peles, que era a do marido. Nunca percebi muito bem o que é que ela fazia da vida, qual a sua profissão, sei que andava sempre bem vestida, meia mama de fora , longos cabelos loiros, baton vermelho mas mesmo vermelho, tão vermelho que quase aposto que gastava um batôn inteiro só para pintalgar as beiças. As unhas, essas, sempre impecavelmente bem tratadas mas tão grandes que faziam o deleite de qualquer agricultor que precisasse de uma enxada para cavar. Eu era miúdo, não percebia muito bem o que se passava . Alguns diziam que ela era bruxa, outros diziam que era prostituta; entre uma e outra venha o diabo e escolha. Pelo menos uma coisa é certa, fosse bruxa ou prostituta, de bolas percebia ela. Realmente eu via vários homens entrarem para casa dela, bem vestidos, boa pinta, mas sempre pensei "coitadinha da velhota, lá vai mais um enfermeiro para lhe dar a injecção e os comprimidos" . Ao que parece, não me enganei por muito, eles realmente iam lá para lhe dar com a injecção, e os comprimidos que ela tomava deviam ser daqueles de carne, com cabeça e pescoço.
Sempre a vi como uma senhora doente. Ela queixava-se muito das costas, eu sempre pensei que fosse devido à bilha de oxigénio que o senhor Acácio, o seu marido, usava constantemente, inclusive na cama. Mais tarde, e com o passar dos anos, pensei que fosse culpa daquele rapaz moreno de olhos verdes, musculado, na casa dos 20 anitos que ia todas as 3ª's e 6ª's lá a casa dar aulas de ginástica, pensava eu. "Uma senhora tão doente como a Madame Carlota não devia fazer ginástica nem levantar pesos, deve-lhe dar cabo das costas" , pensava eu muito inocentemente. Mal eu sabia que o único peso que ela levantava era o halter de 200gr de pêlo que mais parecia um bife do lombo. Com o passar dos anos, a coisa intrigou-me e resolvi ir ao chinês comprar uns binóculos. O ritual da madame era o seguinte :
7h da manhã - Acordar, tirar a dentadura do copo de água na mesinha de cabeçeira
7h05m - Dar mais uma mocada no despertador e coçar a mama direita.
7h10m - Senta-se na retrete para arriar o calhau com muito cuidadinho por causa da hemorróida.
7h25m - Acorda na retrete com o despertador a tocar.
7h40m - Pinta-se em frente ao espelho, veste 4 soutiens para conseguir segurar as mamas acima do umbigo e passa perfume na passaroila não vá o Acácio tomar o Viagra logo à noite
8h30m - Toma o pequeno almoço ; 28 comprimidos de 9 cores e 7 formatos diferentes. Ah, também belisca metade de 1/3 de meia torrada. Ficou cheia.
Saía para dar o passeio matinal e voltava para casa, voltando a sair só para o lanche na esplanada com as velhas lá da rua. Eram 4, de propósito para jogar à sueca, todas juntas deviam somar 900 anos de vida - ou mais . Uma delas , senão me engano, esteve presente na última ceia de Cristo, só para vocês verem.
" Boa Tarde, o que é que vai ser Dona Carlota ? " , perguntava o empregado. " Um palito de torrada e meio garoto. Ah, e para si é Madame Charlotte, s'il vous plaît !! ", ao qual ele respondia " Desculpe mas não temos da Yoplait , pode ser outra marca ? ".
Eu não me posso queixar muito, comigo ela até era porreirita. Com a excepção de nunca me ter chamado pelo meu nome, dizia sempre outro nome qualquer, tipo Olá tiaguinho, ou Nuno , tás bonzinho ?, seguido de toma lá 5 mé reis e vai comprar um rajá. Hoje em dia, e com o processo Casa Pia, se ela fizesse isso, muito provavelmente estaria a comer scones e chá na ala B da prisão feminina de Tires.